Atire a primeira pedra contra ela

Covinhas apareciam quando a mãe fitava o jardineiro. Todos os dentes dela visíveis, a cabeça ia para trás, a gaitada com o corpo todo sacudido. Os olhos se apertavam. As piadas dele deviam ser muito boas. Depois, ela me dizia que ele ia consertar algo no quarto e eu só conseguia ouvir um ritmado. Pápápá. Todo dia. No meu horário do Dragon Ball Z na TV Globinho.

Quando o sol deixava de alumiar a terra, quase noitinha, o pai chegava. Trazia um buquê, gostava de dar flores para a mãe. Rosas vermelhas. Atravessava o portal de casa, ela ia ao encontro dele. Encostavam os lábios rapidamente. Ela estendia os braços, a boca em linha. Na cara dele, a vista marejada. Tocava no rosto dela com dedos de vidro. O medo de quebrar a mãe, como se ela fosse as santas da igreja, que ele limpava para a missa de domingo.

Um dia, o pai chegou de surpresa. O Goku tinha acabado de se tornar super sayadin, caralho a luz amarela, o cabelo loiro! O Freeza matou o Kuririn, espero que ele destrua esse desgraçado! O jardineiro e a mãe estão no quarto, nos consertos. O pai passa por mim e nem me vê. Abre a porta do quarto. Grita: Maria, sua vagabunda! Fecha a porta, mas escuto corpos se chocando. Goku e Freeza. Vidro se estilhaça. O jardineiro sai correndo, o pai puxa a mãe pelo braço, a joga no chão. Ela se desmancha em lágrimas. Estou com o coração em saltos, não quero perder ninguém. Já basta a morte do Kuririn.

Ir às missas me faz lembrar desse dia. O padre faz a homília: Evangelho de João, 8,1-11. Uma mulher é apanhada em adultério e os escribas e fariseus querem testar Jesus. Pela lei, ela tem que ser apedrejada. Cristo responde: Aquele que de entre vós está sem pecado seja o primeiro que atire pedra contra ela. E continua a escrever no chão. Seguro a mão de Lisa com força. Ela se vira e me dá um beijo no rosto. Estamos juntos há dez anos.

O café se espalha pela casa, enquanto Lisa prepara minha lancheira. Hoje é meu dia de ir presencial, comparecer na reunião com o programador chefe. Rumo para a porta, apressado. Ela me entrega a bolsa. Aprendeu com o moço da internet. Sou zuado no escritório, mas quando é a hora de comer, parece que lobos estão me atacando. Sobra nada.

O relógio da sala tá marcando quinze e quinze. Começo a me organizar para a reunião. Caneta, bloco de notas, notebook. Tá quase descarregando, que porra. Cadê o carregador? Procuro embaixo da mesa, nada. Fuço pelos armários, prateleiras. Não encontro. Putz! Esqueci em casa.

Entro no apartamento, tudo silencioso. Ela deve tá tirando o cochilo da tarde no quarto. O carregador também está lá. Antes de entrar, escuto um ritmado. Papapá. Bato com força. Lisa! Lisa! Lisa! Parece não me ouvir. Insisto, quase derrubando a porta. 

Ela abre, descabelada, amarrotada. Oi, amor? Chegou mais cedo? Sim, esqueci a fonte do note. Passo por ela, um cara está nu na cama. Olhos arregalados, o pau murcho. Aperta as mãos, o punho pronto para a luta.

Encaro ele. Relaxa, cara. Ela é muito gostosa, né? Pego o cabo, dou um beijo nela e sigo para a reunião. Espero que o trânsito não esteja fodido.

Por Manu Silva

Conecte-se comigo no instagram: https://www.instagram.com/textosdamanuela

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *