Cala a boca, trambolho amarelo

Faz horas que olho para o telefone. Antes branco, agora amarelado. Teclas quadradas dos números gastas nas beiradinhas. Os fios descem pela prateleira, terminam na tomada instalada perto do chão. O toque estridente, trrrim-trrrim. Nessa casa só se fala alto. O povo tem medo de não ouvir.

Hoje eu não queria que ele tocasse. Tô sentada no sofá da sala, camiseta branca do mickey, short jeans, pé no chão. Ninguém me ajudou a pentear minha juba. Todos esperando as notícias que disseram que viriam pelo telefone. 

Olho pela janela. O dia está cinza. Há nuvens no céu, não vejo o sol, tudo nublado e abafado. Parece que o ar pesa, consigo, com as mãos, cortar as camadas dele em volta de mim. O mundo perdeu a cor? Dia desses fiz dez anos, e sei lá, nunca imaginei que veria isso tão cedo. E jamais com uma pessoa tão importante para mim. 

Ela disse que me daria uma corrente de ouro quando eu fizesse dez anos. Tô aqui esperando o presente. Quantas outras promessas foram feitas. Tenho tanto para mostrar para ela ainda…

Quero continuar morando na extensão dos braços dela. Afundar nas suas fragrâncias únicas: vela derretida, lavanda, chá de erva cidreira. Mirar aqueles olhos pretos, ornados no meio da pele retinta. Eles que sempre me dizem, carinhosamente: estou aqui.

Não quero que esse telefone toque hoje. Devia demorar mais uns vinte, cinquenta, mil anos…para que ela pudesse ver quem vou me tornar. É estranho. Ninguém nunca conversou comigo sobre isso, diretamente. Mas aqui, plantada no sofá, parece que já sei. Um misto de esperança e dor. Apesar do esperado, não acredito que isso não vai acontecer de verdade. 

Minha perna dói. As coxas cruzadas faz um bom tempo. Câimbras. Me mexo. O trimm trimm se espalha pela casa. Meu coração acelera. A tia atende apressada. Alô! Escuto vozes apressadas do outro lado da linha. Minha tia solta o fone, começa a se derramar em lágrimas. As camadas de ar cinzentas se fecham em meu entorno. Algo se quebra aqui no meio do peito, uma cascata se desprende dos meus olhos. Eu nunca vou entender a morte. 

Vá em paz, Vó.

Por Manu Silva

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