“Ele pode ser até azul”. Ficou com estas palavras ressoando dentro de si, e instantaneamente uma camada de gelo derreteu em seu coração.
Desde que se entendeu como mulher negra, as experiências amorosas ficaram mais complexas. Pensando bem, relacionamento nunca foi um terreno fácil. Tinha sido a típica adolescente de nariz enfiado nos livros, óculos fundo de garrafa e com nada de curvas. Um patinho feio que ninguém se aproximava.
Com o tempo, o volume de mulher chegou. As madeixas encaracoladas voltaram. Tinha se descoberto um cisne. Mas, ainda assim não era seu habitat natural as idas para boates, shows e locais de paquera. Começou a se relacionar com pessoas do trabalho, amigos ou próximos, era mais fácil seduzir gente já mais ou menos conhecida.
E mesmo assim, às vezes acontecia uns rolês estranhos. O cara dizia que não queria nada sério e depois aparecia namorando. Quando aceitou namorar à distância, meses depois levou um fora. O outro disse que não era tampa de panela, mas uma frigideira. Queria se fritar sozinho.
Tentou aplicativos, até conheceu alguns caras legais. Só que um lado dela gostava do profundo e da conversa, não se acostumava com a ideia do cardápio. Onde ficava a conquista, a gentileza em tudo isso? Ainda tinha ilusões com o amor romântico? Talvez não, talvez só gostasse do básico, mas isso tava meio difícil de achar nos aplicativos hoje em dia.
No final, o amor era um jogo em que ela sempre estava apostando nas cartas erradas, investindo tempo e recebendo nada. Percebeu que só tinha namorado homens brancos. Será que a tal solidão da mulher negra estaria afetando ela? A solução seria viver o famoso “amor afrocentrado”?
Talvez ao encontrar um cara negro racializado as coisas seriam diferentes. Ele teria as mesmas cicatrizes que ela. Poderia comentar sobre as opressões escancaradas e as sutis do racismo sem receber um olhar de descrédito ou mimimi. Chegou a procurar, ir em locais e eventos negros, mas não apareceu ninguém que brilhasse pra ela.
Até que um dia viu um professor de futebol no campinho ao lado de casa. A voz rouca dele gritando com aquela cambada de menino arrepiava. A pele era de ébano como a dela, e ele ainda tinha olhos negros arrendodados e lindos. E um belo par de ombros largos.
Se avistaram quando ela estava passeando com a cachorrinha. Os olhos se cruzaram e ela não conseguiu dizer um boa noite, no impulso fez uma reverência com a cabeça. Ele respondeu com um aceno também. Quando ele passou dela, sentiu as bochechas em brasa, o ar tinha ido embora dos pulmões. Mas na mesma hora foi invadida pelo combo de julgamentos: se emocionou fácil, e se ele fosse casado? Estariam no mesmo nível? Na mesma hora uma lista de requisitos se desenhou sobre seus olhos. Então, mais uma vez percebeu que ao menor sinal de interesse um roteiro irrompia na cabeça. Tava com muito medo de sofrer.
Dia da terapia. Quis falar de amor e como achava que nunca era escolhida. Relembrou ex-namorados, amores frustrados, comentou que havia decidido só namorar com homens negros porque para ela, enquanto “pessoa do movimento”, era o certo a se fazer. Além disso, estava traumatizada com brancos.
A psicóloga anotou coisas no caderninho, deixou ela derramar as dores. Quando ela expulsou o que guardava, começou a fazer as perguntas que só psicólogos sabem fazer. As que vão lá no âmago. Ao ouvir suas respostas, ela contemplou que no fundo só queria alguém com quem a admiração fosse recíproca. Acima de tudo, que respeitasse quem ela era em essência. E não, não importava se ele fosse negro, amarelo, branco ou azul. “Ele poderia até ser azul”, a psicóloga disse. O importante era reconhecer e acolher quem ela era. Muito mais que cores, status, checklists.
Amar e ser amada pelo homem azul era algo que começou a sentir que valia a pena experienciar.
Por Manu Silva
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