“Festa estranha com gente esquisita”. A voz do Renato cantarolou na cabeça, enquanto olhava ao redor. Apartamento miúdo, umas trinta pessoas e a sensação de que ela não conhecia mais da metade. Uma mesa enfeitada, bolo branco com rosas vermelhas, no topo um carinha de cabelo preto sorridente de mãos dadas com uma moça ruiva meio séria. Quem fez as miniaturas devia conhecer mesmo o casal.
De repente uma risada estrondosa fez ela voltar a cabeça na direção esquerda da sala. Lá estava ele, rodeado de amigas. O centro das atenções. Desse ângulo, ela conseguia vê-lo melhor. O cabelo preto, geralmente espetado para todos os lados, tinha sido colocado num topete alto, com as laterais em degradê. As sobrancelhas grossas se uniam no centro da testa quando ele sorria, fazendo sumir os olhos puxados. Se destacavam mais ainda as covinhas das bochechas. De fato, muito bonito. Mas por que seu estômago se revirava? As entradinhas do coquetel ameaçavam fazer o caminho de volta.
Precisava respirar, não queria colocar os bofes para fora no meio daquela gente toda. Pegou a bolsa que havia deixado numa mesinha próxima da porta, girou a maçaneta e saiu. Ninguém notou, ainda bem.
Aquele bairro era novo, tinha ido no apartamento poucas vezes. Ficou andando pelas ruas, ainda eram vinte e uma horas, estava movimentado. Algumas pessoas a olhavam com curiosidade, ela franzia a testa pensando no porquê. Seria o vestido? Tudo exigência para a festa. A ânsia de vômito irrompeu pela garganta só de lembrar.
Um letreiro meio apagado chamou a atenção. Leu devagar: “A Ova”? Deu um passo à frente. Tinha um “c” no começo, a luz dele murcha ao lado das demais. “A Cova”. Esse era o nome. Um bar. Só tinha uma porta dupla no meio da parede, um cartaz no chão com destaque para o cardápio. O vidro da entrada não permitia ver como era por dentro. Decidiu entrar.
Sentiu a visão turva ao sair da rua iluminada e se deparar com um ambiente desalumiado. Ficou uns minutinhos na porta esperando os olhos se acostumarem. Deu certo. Na esquerda, avistou uma bancada de madeira, cadeiras de costas altas, um rapaz de camiseta preta servindo bebidas. Foi até lá, sentou-se em uma das cadeiras, o moço veio. Pediu uma água. Precisava limpar a garganta primeiro.
Com a água na mão, girou uns 180º na cadeira e viu um palco. O lugar parecia maior do que ela tinha imaginado. Haviam mesas espalhadas pelo salão, lotado de pessoas. Roupas verdes fluorescentes, pretas, rosa pink. Diversas. Música antiga saía pelos alto-falantes, mas o som das gargalhadas e conversas ultrapassava a voz do Axl Rose em alguns momentos.
As orelhas dela focaram em um grupo que conversava animado sobre astrologia. A menina gótica contava porque áries é mesmo satanáries, e os infernos que um nativo desse signo tinha feito ela passar. Sorriu, uma lembrança parecida passou pela sua mente. De repente, sentiu a pele arrepiar. Um estranho se aproximou do seu lado. Moveu a cadeira de uma vez na direção dele e encontrou-se com um par de olhos escuros, sombrios. Uma testa que também fazia uma curva de interrogação como a dela. Maxilar quadrado, marcado, pele acobreada. No pouco que dava para ver naquela escuridão, ele era impressionante. Ele também tinha sentido?
“Quem é você?”, ouviu ele disparar na hora.
Recolheu-se em si mesma. “Por que ele me fez essa pergunta?” Estava tão de boa em sua vibe fofoqueira, se distraindo com o papo da mesa próxima. Agora, ela tinha recebido uma interrogação que sempre a jogava num abismo dentro de si mesma. Olhava em volta e não conseguia mais se reconhecer. Sentiu na boca a língua ácida, com resíduos vindos do refluxo. O gosto da sensação de não se sentir mais dona das suas próprias escolhas.
Como podia ter chegado até aqui? Vasculhava suas memórias em busca de respostas. Havia reencontrado o crush de infância no forró, realizado o sonho da sua versão adolescente. Começaram a namorar. Agora ela tinha acabado de sair da sua própria festa de noivado,veio parar num bar com o vestido branco que tinha detestado. Mas que precisava usar para agradá-lo. Alguém que, hoje, ela odiava com todas as forças do mundo.
Não sabia mais quem era. Ela, se forçando a agradar a alguém? Um poço de contradição para si mesma.
Se ajeitou na cadeira. O cara a fitava, soltando baforadas de fumaça no ar. Guardava um riso, esperando a resposta.
As palavras saíram liberando trezentos quilos do corpo dela: “Pergunta outra coisa, jovem. Perguntas existenciais a essa hora não dá”.
Por Manu Silva
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